ENTREVISTA
DUTO
Olivia Abrahão
Concebido em 2019 por Olivia Abrahão, o Duto é uma plataforma independente que se propõe a impulsionar forças transformadoras na arquitetura através de exposições experimentais que acontecem entre o online e o presencial, em eventos itinerantes. A Iniciativa tem como objetivo dar espaço e promover o encontro de arquitetos, artistas e outros profissionais para além da formalidade de suas respectivas instituições ou da academia. Deseja contribuir e promover debates e encontros estimulando a noção de arquitetura como um campo de amplo espectro que alcança e envolve indivíduos de práticas variadas.
Com a pandemia, questionamentos sobre os usos da cidade se aguçam: estamos construindo uma cidade que condiz com a realidade em que vivemos? Como plataformas como o Duto podem se reestruturar dadas as condições de reclusão social?
ENTREVISTA
[Laura Belik] A iniciativa do Duto e sua primeira exposição em dezembro de 2019 trouxe à tona a importância de se criarem espaços físicos e de encontro para promover debates e questionamentos no campo da arquitetura através de um viés experimental. Como foi este primeiro evento do Duto?
[Olivia Abrahão] Depois de muito debater sobre qual seria o tema da primeira exposição, entendemos que seria pertinente pensar esse evento como algo metalinguístico - uma exposição de arquitetura que tratasse da dificuldade de se exibir arquitetura e que questionasse os termos e moldes em que esse ato se dá. Nesse contexto, era importante apresentar vozes tanto da arquitetura quanto da arte, além de uma diversidade de mídia e dispositivos utilizados por cada um. A escolha dos integrantes se deu a partir de suas trajetórias profissionais e de como elas dialogavam com a arquitetura e o tema proposto para o evento do Duto. Ao todo foram cinco participantes convidados - dentre dois grupos de coletivos (Vão e metade), e três produções individuais dos artistas André Komatsu, Frederico Raviolli e Maria Noujaim. A proposta era de desenvolver trabalhos exclusivamente pensados para a laje de um espaço expositivo na Barra Funda, o Olhão, espaço que por si só já contém diversos simbolismos e contradições.
Nesse sentido, o envolvimento prévio desse grupo em reuniões e encontros para conceber e construir a exposição foi fundamental. Deu muita força e sentido para o que veio a ser exposto e tanto quanto o produto final, o processo em si foi muito rico. Além disso, acreditamos que não só as obras, mas a programação que complementou a exposição - como as conversas com os participantes e com outros convidados - foi de extrema importância para a efetivação da discussão que o Duto quis propor. Outro fator bastante relevante foi o local onde a exposição aconteceu, um espaço relativamente novo na Barra Funda chamado Olhão. Poder criar parcerias com outras iniciativas dá força para ambos os lados e é uma forma de ativar lugares com discussões que talvez não acontecessem “naturalmente” ali, atingindo um público mais vasto. Uma característica do local que agregou à discussão foi a existência de uma laje onde as obras foram expostas. A laje subverte a idéia da existência de um espaço ideal para exposições, e adiciona camadas inesperadas às obras. Isso por um lado foi um processo desafiador - como por exemplo, lidar com o ruído da cidade, a poluição sonora e visual, a imprevisibilidade do clima - por outro, quando incorporadas aos projetos, essas novas camadas também trouxeram maior complexidade aos trabalhos e à noção de representação que eles questionavam. Achamos que foi uma bela forma de iniciar a programação do Duto.
[LB] Conte um pouco mais sobre cada um dos cinco trabalhos apresentados nesta primeira exposição.
[OA] Como comentei, foram cinco os participantes convidados para a primeira exposição. Dois deles eram coletivos trabalhando com arquitetura ou na intersecção entre arquitetura e arte, e os outros três trabalhos eram projetos individuais de artistas.
O artista André Komatsu utilizou materiais construtivos na criação de sua obra, gerando um grid com fios de aço e tijolos, compondo uma instalação de caráter crítico e político; Frederico Raviolli fez uso de estruturas infláveis que reestruturaram o espaço e direcionaram o fluxo das pessoas na exposição; o coletivo metade, a partir de um texto crítico que delimitou o perímetro da laje, transcendeu este espaco se expandindo para o bairro através do uso de pipas, invocando algumas provocações sobre o significado de "lugar"; Maria Noujaim através da construção de um cenário criado a partir de materiais achados no entorno do Olhão, performou com gestos e movimentos demonstrando possibilidades de como o corpo pode se relacionar com a arquitetura e os materiais que a constituem; por fim, o Vão criou uma estrutura que dependia de fatores imateriais: o tempo, o clima e o estado físico dos materiais em uso. O coletivo elaborou uma estrutura tensionada a partir de algo sólido, porém por tempo indeterminado - o gelo. Durante o período do evento, a estrutura ia se modificando até sua completa "destruição", demonstrando de forma poética a passagem do tempo, a mudança do clima e da composição da água - do estado sólido para o líquido e então gasoso.
[LB] Inicialmente, quais outros projetos e propostas você havia pensado para dar continuação a este movimento?
[OA] Como segundo evento, estávamos organizando um workshop com uma arquiteta e ilustradora de Barcelona cujo trabalho desafia bastante os estatutos de representação de arquitetura, porém tivemos que desmarcar por conta do início da quarentena. A ideia do Duto é que os eventos aconteçam de modo itinerante. Cada mostra deve ocupar um lugar diferente da cidade, de acordo com um tema induzido pelo próprio espaço ou bairro. As especificidades de cada espaço deve servir de inspiração para o colaborador propor uma programação de intervenções com discussões. Além de exposições e workshops, pensamos em outras formas de encontros como cineclubes, rodas de conversa e publicações. As ideias tiveram que ser pausadas, mas assim que for possível pretendemos retomá-las.
[LB] O Duto deixa claro a sua ênfase quanto à relevância do “evento” (gathering) para aguçar discussões e questionamentos do construir arquitetônico. Como a pandemia impactou as atividades do Duto? Como seria possível continuar os debates iniciados mesmo sem o espaço físico inicialmente proposto?
[OA] Acreditamos no encontro e na possibilidade de diálogo para trazer diferentes “vozes” para a discussão da arquitetura como um caminho fundamental para promover possíveis mudanças no campo. Mesmo o Duto nascendo com o propósito de ser tanto uma plataforma virtual, quanto presencial na cidade, a construção desses dois “braços” estava se dando de forma concomitante, num processo de retroalimentação. A impossibilidade de eventos presenciais afetou bastante a forma como exploramos nosso conteúdo online. Ainda estamos entendendo como atuar e engajar o público de forma diferente, que não seja através de lives ou exposições online. Já existem iniciativas fazendo um bom trabalho no campo exclusivamente virtual, então o desafio aqui é pensar em proposições de fato agregadoras, não simplesmente “surfando a onda” do momento.
[LB] Recentemente houve uma discussão sobre a eficácia (ou não) de uma mostra online com obras do artista Hélio Oiticica, conhecido por engajar o público através da interatividade com seu trabalho. Vejo este debate relevante para pensarmos as ações promovidas pelo Duto. Como você interpreta estas questões em relação ao campo da arquitetura experimental? Como podemos imaginar a interatividade e troca em um momento de reclusão?
[OA] O interessante da arquitetura experimental é que desde o início de sua concepção estão presentes questionamentos relacionados a funcionalidade e viabilização: por exemplo, tradicionais questões de projeto as vezes restringem e acabam por inibir certas “extravagâncias”. O contexto experimental dá espaço para a elaboração de projetos mais conceituais ou radicais. Isso muitas vezes dá luz a questões da vida cotidiana super interessantes, que deixam de ser exploradas dentro de condições impostas por um “cliente” em um projeto de edificação.
O exemplo da obra do Hélio Oiticica é um bom ponto para pensarmos nessa questão. Acho impossível sermos tocados igualmente, de forma virtual, pela experiência de entrar em um “Penetrável” de forma física. Um bom contraponto é pensarmos nas obras de artistas como o Robert Smithson. Os trabalhos de Smithson aconteciam fora do espaço da galeria, e o que era exposto era apenas um fragmento, uma referência ou uma representação de algo que já havia acontecido em outro local. Isso pode ser um canal para repensarmos questões de representação.
Acho que esse momento de reclusão que estamos vivendo ilustra traz a tona questões de representação latentes. Ainda é cedo para visualizar as consequências do que estamos passando, mas certamente é um momento propício para reavaliarmos as formas usuais de representação da arquitetura.
[LB] O Duto em muito se assemelha à algumas das discussões trazidas pelo Desestrutura. Enquanto uma plataforma nasce online, a outra vive no meio físico. Pensando em produtos que representem o “repensar” da cidade e seus espaços, quais as vantagens do meio digital, e quais as vantagens do meio físico para promover estes questionamentos? Como repensar o digital como um possível espaço físico alternativo? O que você vê como inalcançável fisicamente? E digitalmente?
[OA] Essas são algumas questões que também nos fazemos e para as quais não temos respostas objetivas - acho que desestrutura e Duto estão aí para contribuir nesse debate. Por ora, sentimos que uma das coisas positivas do meio digital, é a capacidade de ativação de um público mais diverso, e isso é uma preocupação que o Duto sempre teve - incluir na discussão pessoas de outros campos, que não só do meio das artes e da arquitetura. Não acreditamos que o digital possa substituir o encontro físico e todas as interações interessantes que ele proporciona. Inevitavelmente quando falamos de arquitetura falamos de espaço, de ativação de diferentes sentidos e acho que isso é impossível de ser plenamente alcançado no meio digital. Por outro lado, sabemos que com o virtual há menos dificuldade de viabilização financeira - uma realidade que todo projeto independente enfrenta. Inclusive, para o Duto, a ideia de se colocar como uma iniciativa híbrida que se dá tanto no campo virtual quanto no presencial surgiu justamente para se adequar a um edital. Considerando a verba oferecida, logo percebemos que grande parte dos recursos seriam consumidos pelos custos relativos à manutenção do espaço em si. Isso impossibilitava a destinação desta verba a outros tópicos prioritários para o Duto, como o pagamento e a valorização de profissionais e colaboradores que são tendencialmente precarizados no meio cultural brasileiro.
[LB] Que outros espaços vemos no Brasil e no mundo hoje que se engajem coletivamente com atos de se repensar da cidade que você já havia identificado?
[OA] O Duto não surge como uma iniciativa isolada; muito pelo contrário. Ele é fruto de uma experiência profissional que tive em um dos primeiros espaços no mundo a propor exposições experimentais sobre arquitetura, arte e design, o Storefront for Art and Architecture em Nova York. A partir dessa vivência, comecei uma pesquisa na qual mapeei as principais iniciativas do tipo mundo afora. Nesse esforço, rapidamente me dei conta de que são de fato poucos os espaços que propõe essa discussão fora das universidades. Menos frequentes ainda são as iniciativas que desenvolvem esse trabalho de forma independente. Foi também bastante relevante a constatação de que grande parte desses [poucos] espaços estão concentrados no hemisfério norte, portanto era urgente a necessidade de um projeto no Brasil que contribuisse para uma abordagem da arquitetura brasileira de um ponto de vista local. Ainda assim, eu identifiquei uma rede de espaços que tem servido como referência para o Duto, como o Liga na Cidade do México, o Campo em Roma e o Monoambiente em Buenos Aires (que infelizmente encerrou suas atividades recentemente).
[LB] Percebemos momentos de tensão e crise também como tempos para se repensar como vivemos e interagimos com o mundo. Se por um lado estamos travados em muitas frentes, o conceito e ideal de “progresso” também é reconsiderado. Como a arquitetura (e a experimentação em relação a arquitetura) pode contribuir nesta fase? O que podemos identificar como projetos anteriores (no Brasil) que lidam com este tipo de questão a sua maneira?
[OA] Sabemos que de alguma maneira o papel da arquitetura e do urbanismo é pouco explorado considerando a importância e força que este campo de fato tem para promover mudanças na sociedade. Talvez nesse momento da pandemia, a valorização da arquitetura como ferramenta potente para se pensar em novas formas de habitar e entender a cidade, esteja ficando mais clara. A arquitetura responde à demandas, sejam elas impostas por clientes ou pelo contexto político-social. Por mais horrível que esse momento seja, assim como outras crises que tivemos na história, ele é uma oportunidade para repensarmos novas formas de produzir arquitetura. Nesse sentido, a experimentação pode indicar novos caminhos, antes não explorados por questões de funcionalidade ou por um certo comodismo.
Acreditamos que tanto o Desestrutura como o Duto são plataformas que pensam em como servir a uma audiência interdisciplinar e afirmar a arquitetura como uma forma de cultura pública. São Paulo possui dezenas de museus dedicados à arte, porém nenhum dedicado exclusivamente à arquitetura. Muitos dos desafios que enfrentamos são relacionados a questões espaciais, urbanas, de moradia e saneamento - problemas e questões que irrevogavelmente trazem arquitetura de volta à esfera pública.
O Arte-Cidade é uma referência para nós no sentido que explorou a arquitetura como um campo que está em constante diálogo com a cidade e a arte, incorporando todas as complexidades que essas esferas lidam diariamente tanto em termos de território quanto das relações humanas que se dão ali.