ENTREVISTA
Fotografia em tempos de reclusão:
JORGE SATO
Agosto 2020
O fotógrafo Jorge Sato reflete sobre sua produção, processos criativos e como os desafios enfrentados em tempos de reclusão o levaram ao projeto Microcosmos
ENTREVISTA
[Laura Belik] Nos conte um pouco sobre sua produção como fotógrafo e que tipo de imagens e temas você costuma registrar.
[Jorge Sato] Costumo dividir minha produção em dois segmentos. Comercial, usando câmeras digitais, uma linguagem estética mais clássica e sempre perseguindo aquele momento fugaz nas entrelinhas do movimento. Atuo na área de fotografia de ação, como Still e Making of de filmes publicitários, bastidores de automobilismo, Jiu-Jitsu, festivais e dança contemporânea.
Já no autoral, uso diversos tipos de câmeras analógicas, cada qual com suas características particulares. Busco uma estética mais sinuosa e abstrata, tentando fazer releituras da realidade, principalmente através da técnica de múltipla exposição diretamente no negativo. Meu objetivo é transitar entre diversos movimentos artísticos como referência criativa: o ruído do Surrealismo, o movimento e energia do Futurismo, as tonalidades e composições do movimento Romântico, etc. A temática no autoral engloba do urbano à natureza, sempre com espontaneidade e sem grandes produções. Levo comigo apenas as câmeras e um par de tênis confortáveis, já que ando muito durante o processo de criação.
[LB] O elemento do movimento e sobreposição sempre esteve muito presente nas suas fotos. O que essa escolha estética significa para você? E como isso tem se mantido ou mudado depois de meses de reclusão?
[JS] A sobreposição é o alicerce do meu trabalho autoral há quase uma década. Uma das principais características que admiro nesta técnica é poder reinterpretar o assunto fotografado, criando uma narrativa fantástica baseado na imaginação e imprevisibilidade.
Meu processo consiste em imaginar como será a sobreposição final. Por exemplo, misturando uma imagem de edifícios com uma imagem do mar, tento interpretar como seria a ilha fictícia de Atlântida. Nesta fusão, eu não tenho o controle de qual será o resultado e isso me atrai bastante. Outra questão sobre o uso desta técnica, é que ela reflete no modo em que penso, em como são as minhas ideias: muitas vezes confusas e sempre de forma acelerada.
Com a quarentena, acabei dando um descanso para minhas câmeras analógicas. Este respiro é necessário e acredito que será importante para as futuras criações. Quando estiver seguro a voltar a produzir, vai ter muita energia acumulada para ser transformada em imagens.
Sem a possibilidade de sair de casa, o processo criativo foi se transformando, enfatizando o interior, tanto no sentido literal quanto no emocional. Ao invés de imaginar composições com grandes estruturas e de forma dinâmica ao ar livre, o foco foi se voltando para os detalhes e ao estático e isso possibilitou explorar novas ideias e poéticas, apesar de toda a dificuldade.
[LB] Seus registros espaciais, de edifícios ou outros elementos construídos parecem de certa forma questionar a estática destes ambientes. Na arquitetura é comum se entender o movimento dos espaços através de seus usos. Entretanto, determinadas características das construções muitas vezes também nos levam a interpretar um certo ritmo ou leveza às edificações. Como você descreveria sua interpretação como fotógrafo destes espaços?
[JS] Apesar de adorar fotografar arquitetura, confesso que não entendo a fundo sobre o tema. Tanto que é por isso que fotografo este segmento de forma autoral, porque eu teria problemas se fosse comercialmente. Quero ter a liberdade de não ficar preso à simetria, a perspectiva perfeita ou qualquer outro padrão da fotografia de arquitetura, mesmo porque provavelmente eu não atingiria estes resultados. Eu admiro, respeito, mas realmente não é meu estilo. No meu trabalho não procuro a perfeição, pelo contrário, quero a estranheza, a ambiguidade, o ruído e o sentido figurado.
Tenho um projeto chamado Olhográfico que foi iniciado em 2011 e ainda não foi finalizado. É uma homenagem às obras de Oscar Niemeyer registrado inteiramente com câmeras analógicas Lo-Fi. As criações de Niemeyer parecem obras siderais e reinterpretar suas geometrias de forma futurista e misteriosa foi (e ainda é) desafiador e gratificante.
[LB] Como você acha que a escala do objeto a ser registrado interfere em como você vai registrá-lo?
[JS] No processo de múltipla exposição, gosto muito de jogar com as escalas dos objetos, fazendo com que eles pareçam maiores (ou menores) do que eles realmente são, seja um prédio, uma escultura ou elementos da natureza. O universo surrealista e cyberpunk (conceito “high tech & low life") tem um papel importante para mim como referência para essas ideias.
Quando acredito que um lugar ou objeto tem uma imagem para ser “descoberta”, costumo ficar horas olhando, andando em volta, esperando a luz mudar, imaginando como deixá-lo interessante. É quase um processo meditativo. Às vezes a solução surge em segundos, às vezes volto no lugar inúmeras vezes até sentir a sensação de dever cumprido. Sem dúvida quando o objeto é muito grande, como as obras de Niemeyer em Brasília, é preciso muita água e fé nas pernas.
[LB] Como você interpreta o dentro e o fora? O que esses termos incitam para você?
[JS] O “dentro” seria a pós-produção e o “fora” a ação em si. Quando o assunto é fotografia, tenho extrema dificuldade em ficar dentro de um estúdio, porque gosto de usar a rua como matéria-prima para as imagens. A exceção é para Still e Making of. Nesses casos adoro estar na locação e tentar capturar ângulos, enquadramentos ou momentos que vão acrescentar ao projeto e à visão do diretor.
A mudança de foco do “fora” para o “dentro” imposta pela pandemia foi um choque criativo, considerando que minha pratica fotográfica se dá majoritariamente em ambientes externos. No começo me senti paralisado, mas com o tempo percebi que seria preciso repensar os espaços para continuar a fotografar.
A saída que encontrei foi reinterpretar o ambiente e direcionar minha atenção para os detalhes, imaginando meu apartamento como o “fora”, e as características dos objetos (forma, textura, material etc.) como o “dentro”. É interessante como o isolamento tem o poder de alterar nossa percepção de espacialidade e de nos fazer observar itens tão próximos e habituais, que normalmente negligenciamos.
[LB] Como é seu processo para manter ou exercitar inspiração? O que te move como fotógrafo?
[JS] A inspiração vem de todos os lados. Sempre tento caminhar em direção à curiosidade e me distanciar do ego para me manter produtivo, e se possível, criativo. Gosto muito de pesquisar movimentos artísticos de diversas épocas para aprender sobre estilos estéticos. Atento ao uso dos traços, cores, peso visual, proporções etc. Nesta jornada, novas ideias sempre surgem pelo caminho.
Nesses últimos meses tenho visto muitos trabalhos da artista Remedios Varo, com seu misticismo surreal e do artista Norman Lindsay, com suas ilustrações espirituais e mundos fantásticos. Outra fonte de inspiração que tem um grande peso no meu processo de criação são filmes. Atualmente tenho assistido muitas produções de um estúdio independente chamado A24. Eles fazem filmes autorais com muita personalidade em suas ideias (muitas vezes perturbadoras, veja “Midsommar”) e com execução impecável. Tento aprender através dessas obras conceitos de enquadramento e narrativa.
Algo que percebi nesses anos sendo fotógrafo, é que fotografia para mim é essencial e terapêutica: quanto mais faço, melhor me sinto.
[LB] O que é o seu projeto “microcosmos”? Como começou essa ideia? Como é seu processo de escolha para os objetos/espaços/situações registradas?
[JS] Assim como fotografar é um ato terapêutico para mim, o contrario também me afeta: quanto menos fotografo, pior fico e isso justifica o nascimento do “Microcosmos”, como uma válvula de escape, durante o isolamento. Conforme as semanas se passavam, este projeto se tornava cada vez mais necessário.
O projeto Microcosmos busca representar o universo interior através de um olhar onírico sobre objetos triviais espalhados pela casa. A ideia consiste em apreciar a essência dos objetos cotidianos, de forma lenta e tão de perto a ponto de recriar seus significados, resultando em um novo universo.
A foto que deu início ao ensaio foi completamente aleatória. No começo do ano, antes de tudo acontecer, trouxe da praia uma folha “Chapéu-de-Sol” porque achei interessante sua textura e suas marcantes transições de cores. A ideia, a principio era fotografá-la quando eu tivesse um momento de tranquilidade.
A quarentena chegou, passaram-se algumas semanas, e esse momento de extrema tranquilidade chegou. Decidi concretizar aquela ideia de registro da folha, mas resolvi usar uma lente macro para trazer mais detalhes à imagem produzida. Percebi que as nervuras lembravam leitos de rios. A partir daí o conceito de Microcosmos começou a ser desenvolvido.
Passei a prestar atenção em todos os objetos da casa procurando suas reinterpretações, afinal, ter tempo não era problema. Para mim, esse foi um exercício de redescobrimento num lugar onde o olhar está completamente viciado pela rotina. O nome “Microcosmos” surgiu quando percebi que minha xícara de café lembrava a Via Láctea. Como adoro cosmologia e cafeína, foi uma agradável coincidência.
MICROCOSMOS
Veja o projeto na íntegra aqui: https://jorgesato.link/microcosmos
Jorge Sato
Situado em São Paulo, Jorge Sato se formou na ESPM (Escola Superior de Propaganda & Marketing) e começou sua carreira na área criativa nas agências de publicidade. Após um ano, conheceu um premiado fotógrafo brasileiro de Fine Art e depois de trabalharem juntos por aproximadamente 3 anos, Sato decidiu focar em projetos autorais visando expressar-se de uma forma única. Apesar de ser um jovem fotógrafo, já participou de muitas exposições solo e coletivas no Brasil e no exterior.
Portfolio: www.jorgesato.com
Instagram: www.instagram.com/satojorge/